30160-000 Reencontro
Considero certa gravura de Angela Biegler: eis um carrinho de supermercado, coberto por manta zebrada, perdido em rua qualquer. O desenho adivinha o que vai sob o tecido felpudo: é a vida mesma de um pária, que, embaixo do pano, acomoda os capítulos de sua biografia desterrada. Não vejo isso – intuo. Pela trama criada pela goiva da artista, pela densidade imprimida à cena. Mais tarde fico sabendo, trata-se, de fato, do carrinho de poeta escrevebundo, morador das ruas do hipercentro. É assim o trabalho de Angela, dona de olhos de vazar superfícies: radiografa coisas. Vem lá do Sul essa vizinha de Jorge Luís Borges, Júlio Cortázar e Érico Veríssimo. De início professora, foi guia num museu da mineração, o qual fez por bem abandonar, antes que o museu a transformasse numa cava. Aportou em BH pelo início da década, trazendo gato, caixas alfanumeradas e alma de artista. Aqui, tornou-se caminhadora voraz: avessa a rapidezes automobilísticas, faz das ruas lugar para peregrinações do olho atento à paisagem furiosa. Olho que se derrama especialmente sobre os objetos, estranhos seres a coabitar o mundo em que vivemos. Frequentam as gravuras de Angela tubos de pimenta sobre um balcão de lanchonete, escovas de dente num copo de plástico, caixas de leite estremunhadas, latas de cereal à guisa de telefone, um vidro repleto de sucata mirífica, cadáveres de sabonete empilhados, a panóplia artística encostada a um canto da casa. Vá, conheço o trabalho da artista desde 2021, ano em que mostrou-me o mapa do caminho que fazia para chegar ao prédio da universidade. No desenho, um inextricável nódulo de cruzamentos e esquinas. Poderia ter desenhado percurso mais simples, mas preferiu a curiosa charada visual, a que deu o título de “3M5M”. E mostrava-me o desenho dizendo: “Não vê? Matemática.” Eu não via exceto o desenho, mas assentia ao enigma da artista, versada nas manhas e artimanhas dos números. Mas também aperreada com as indignidades: moradora do Centro, tem por amigos diletos os catadores de resíduos, entre cujas barracas achou aquele poeta escrevebundo. É, pois, com o lápis da empatia que interroga o habitáculo desses amigos e ainda o seu próprio, não menos provisório que o dos párias. Estar ao léu: quem nunca? Perfurador de superfícies, errático, prenhe de inquietações. Resta dizer que o trabalho de Angela tangencia o realismo, mas recusa-se a mergulhar nele inteiramente. Infiel à mímesis, demora-se na observação das coisas como para gravá-las ao descuido de si mesmas, capturando-lhes lados insuspeitados por meio de estocadas no metal e na madeira. Numa tal gravura, densa, radiográfica, além de acariciada por luxuosa cor, os objetos não se dão por completo: retraem-se em alguma medida. E seguem a desafiar. Ganham mesmo um novo mistério, vez que escapam à categoria do banal: são agora imagens convidando a diminuir a velocidade com que olhamos para eles. Talvez para que os vejamos mais criticamente, talvez para que tenhamos mais atenção à Terra que os recebe, já cedendo sob nossos pés.
Paulo Barbosa
Professor/Escola Guignard
SERVIÇO:
30160-000 REENCONTRO Artista Angela Biegler
Abertura: 11 de outubro de 2024
Horário: 19h às 22h
Período: 12/10 a 24/11 – terça a sexta de 11h às 17h – sábado de 09h às 17h
*Entrada até às 16h30
Local: Museu de Artes e Ofício – Endereço: Praça Rui Barbosa, 600 – Centro – BH / MG
ENTRADA GRATUITA